Questão de Gosto – Parte I

O artigo a seguir foi publicado originalmente na edição especial da revista Jane Austen’s Regency World, no. 44. O texto, escrito por Gillian Dooley (Flinders University, Austrália do Sul), fala a respeito da questão do gosto estético, mais especificamente do gosto musical em Razão e Sensibilidade. A autora mostra como o gosto estético e a moralidade estavam relacionados no pensamento do século XVIII, e como Jane Austen usou a música para evidenciar o comportamento e o caráter dos personagens em sua obra.


Questão de Gosto



A questão do gosto estético e sua relação com o valor moral era um assunto comum entre os moralistas e filósofos do século XVIII. Hermione Lee cita Shaftesbury, Burke e Hume para mostrar que, no século XVIII, “o gosto pela arte, pela literatura e pela natureza, estavam relacionados, e que os três indicavam o valor moral de uma pessoa”.

Os críticos se dividiram com relação à maneira como a obra de Jane Austen endossaria esse ponto de vista. Gilbert Ryle vê “uma correlação predominante entre senso de dever, de propriedade e gosto estético. Muitos de seus personagens que não possuem um desses três, não possuem os outros dois”. Mas as exceções incluem figuras-chave como Henry e Mary Crawford em Mansfield Park, que são importantes demais para serem deixadas de lado, e Mrs. Jennings em Razão e Sensibilidade, que não possui gosto estético e que tem somente um sentido de propriedade muito básico, mas que certamente sabe das suas obrigações. Além disso, ela apresenta uma disposição à gentileza e à solicitude, sinais inquestionáveis de virtude moral.

É bem verdade que todos os personagens realmente admiráveis de Jane Austen combinam todas essas três qualidades: todos os heróis as possuem, e as heroínas ou as adquirem ou as têm desde o começo; mas há, certamente, muitos casos de personagens que possuem uma ou duas dessas qualidades sem possuírem as outras. Estou inclinada a concordar com Hermione Lee de que isso era um “modo de pensar ao qual Jane Austen estava atenta e, ao mesmo tempo, precavida. Aceitava firmemente a ideia fundamental de uma relação entre gosto e moralidade, e era extremamente irônica com relação aos excessos que tal ideia poderia levar”.

De todos os seus personagens, o que mais completamente representa e ilustra os perigos em acreditar que a sensibilidade para a arte, para a literatura e para a natureza equiparam-se à virtude moral, é o de Marianne Dashwood. Marianne é musical; Elinor, não. Esta é uma das maneiras explícitas que Jane Austen usa para fazer a distinção entre suas duas heroínas de Razão e Sensibilidade. Elinor tem talento para desenhar, logo, ela não é de todo desprovida de sensibilidade artística, mas ela possui uma atitude muito mais pragmática, pé-no-chão com relação ao pitoresco do que Marianne. Ela gosta de interromper com ironia as divagações da irmã – por exemplo, quando Marianne descreve os encantos do outono em Norland, e Elinor diz: “Não é todo mundo… que tem a mesma paixão que você por folhas mortas”.

A música por si só possui um significado um tanto quanto ambíguo em Razão e Sensibilidade. Primeiramente é, decerto, um elemento respeitável e aceitável na educação de uma jovem, embora não seja essencial, como mostra a falta de interesse de Elinor. Tocar e cantar, e outros talentos como desenhar e costurar, são considerados por alguns, como o meio-irmão John, meramente como um recurso nas negociações do casamento. Mas Mrs. Dashwood, obcecada em casar suas filhas, encoraja as moças a ocuparem o tempo aperfeiçoando seus talentos, para a surpresa de Sir John Middleton, “que não tinha o hábito de ver muita atividade em casa”.

Tais atividades por si só valem a pena, e a disciplina que elas representam é importante na formação do caráter das moças. Quando Elinor e Marianne vão a Londres, Mrs. Dashwood e Margaret planejam “ir tranquilas e felizes com nossos livros e nossas músicas”. No entanto, a atração exercida pelo talento musical em um marido em potencial é demonstrada claramente quando Marianne toca piano pela primeira vez na casa dos Middletons: Coronel Brandon fica imediatamente interessado e escuta “sem ficar embevecido” apenas dando a ela “o cumprimento da atenção”. E, é claro, quando Willoughby entra em cena, a música é um dos muitos gostos que ele descobre que tem em comum com Marianne, e o prazer que ambos demonstram ao cantar em dueto promove o romance entre os dois. Mas já sabemos que Marianne gosta da música por si só, e que ela considera que é um gosto que deve ser compartilhado com o amado (“a mesma música deve encantar a nós dois”), em vez de ser um meio para seduzir um marido.

A música, portanto, para uma jovem casadoura, possui a dupla função de uma disciplina educacional e de adorno pessoal – um adicional aos encantos através dos quais um marido deve se sentir atraído. Mas pode ser também um perigoso prazer para um devoto da sensibilidade. Depois que Willoughby deixa Barton, Marianne passa os dias vagando e chorando por Allenham, e atravessa as noites com o mesmo estado de espírito. Ela tocava todas as canções favoritas que costumava tocar para Willoughby, cada melodia onde suas vozes se juntaram, sentava-se diante do instrumento fitando cada linha de música que ele havia escrito para ela, até que seu coração ficou tão pesado que não cabia mais nenhuma tristeza; e essa tristeza era a cada dia renovada. Marianne passava horas ao piano cantando e chorando alternadamente e, com frequência, sua voz era suplantada pelas lágrimas.

O excesso de condescendência de Marianne com sua própria tristeza, assim como sua recusa em fazer qualquer esforço para controlar seus sentimentos, irão se juntar, no futuro, à indisposição causada por Willoughby quando este a rejeita em Londres, e à doença grave que ela irá contrair ao caminhar pela chuva em Cleveland. Embora possamos perceber que seus sentimentos são verdadeiros, sua sensibilidade colocada acima de qualquer norma de comportamento parece, a princípio, ser um jogo. Para ela, talvez faça parte da história de seu romance que ela planeja contar em dias melhores, quando estiver unida novamente a Willoughby. Mas quando o reencontro feliz não acontece, Marianne não sabe como se comportar: ela aprendeu a encenar o papel da heroína sensível magoada e, embora Elinor tente ensiná-la, ela não consegue adquirir a autodisciplina e a firmeza que a ajudariam a lutar quando surgissem as dificuldades. Marianne, então, afunda-se em seus sentimentos e somente sua doença fatal poderá ensinar-lhe a lição de que a razão deve se sobrepor ao sentimento. Isto é mostrado em seu retorno a Barton:



Depois do jantar, Marianne tentou tocar em seu piano. Ela se aproximou do instrumento; mas a música que seus olhos primeiro avistaram foi uma ópera que Willoughby havia comprado para ela contendo alguns de seus duetos favoritos, e na capa seu nome estava escrito com a letra dele. Isso ela não iria suportar. Marianne balançou a cabeça, colocou a partitura de lado, e depois de dedilhar as teclas por alguns instantes, reclamou de fraqueza nos dedos, fechou o instrumento novamente, declarando com firmeza que, no futuro, iria praticar bastante.



(Continua)

6 thoughts on “Questão de Gosto – Parte I

  1. Desconhecida's avatar Adriana Zardini 14/05/2010 / 6:04 PM

    Elaine, obrigada por mais uma contribuição maravilhosa!

    Eu comprei a edição 44 e gostei muito das músicas!

    Gostar

  2. Desconhecida's avatar Ana Maria 14/05/2010 / 8:03 PM

    Excelente artigo, Elaine.
    Vou ficar esperando pela continuação. Fiquei até imaginando a influência do gosto musical em O&P, não de maneira tão profunda como neste artigo, o que lembrei foi da cena em que Lizzie pensa duas vezes para responder a Mr. Darcy se gosta de uma determinada dança folclórica, receando ter seu gosto musical menosprezado

    Gostar

  3. Desconhecida's avatar Elaine 20/05/2010 / 3:30 PM

    Meninas, desculpem a demora em publicar a continuação, mas é que estou com uma Internet (Oi Velox)aqui em casa que não me serve para praticamente nada. Mas prometo que ainda hoje posto a segunda parte.

    Beijos.

    Gostar

Deixe um comentário