O que Jane Austen faria?

Parece título de livro, mas não… é um texto que a Mariana Fonseca (membro do JASBRA) traduziu de um artigo do Wall Street Journal.

O Que Jane Faria?

Como uma solteirona do século XIX serve como guia moral no mundo de hoje
por James Collins
(publicado no site do Wall Street Journal em 14 de novembro de 2009)
Jane Austen é muito divertida. Suas personagens são vívidas. O equilíbrio de suas sentenças é perfeito. Seus enredos são bastante bons – pelo menos, eles mantêm você lendo. No entanto, escrever romances brilhantes não era o objetivo principal de Jane Austen: O que era mais importante para ela era fornecer instrução moral.
Em sua essência, os livros de Austen são trabalhos morais. “Abadia de Northanger” é na verdade sobre a educação moral de Catherine Morland: Ela aprende que o mundo não funciona de acordo com os princípios de um romance gótico. Como o título indica, “Razão e Sensibilidade” é um conto moral: É a história do autocontrole de Elinor e do comodismo de Marianne. O evento central tanto em “Orgulho e Preconceito” quanto em “Emma” é a descoberta de cada heroína sobre sua própria fraqueza moral. “Mansfield Park” trata de todo tipo de questão moral, da decência no envolvimento com o teatro amador até as conseqüências do abandono do marido por um outro homem. A premissa de “Persuasão” é a de que Anne Elliot um dia sacrificou sua felicidade por cumprir o seu dever e obedecer a orientação de sua guia moral, Lady Russell. Assuntos relativos à moral não são apenas refletidos nos maiores temas dos livros, entretanto: Eles são universais. Até mesmo o menor ato ou o mais breve diálogo ou a mera descrição da maneira de vestir de uma personagem é carregado de conteúdo moral.
Os leitores de hoje tendem a apreciar Austen apesar de seu didatismo e, não, por causa dele. Ela pode ser positivamente pedante e isso é um obstáculo. O leitor contemporâneo que ama Jane Austen quase pula as partes moralistas e diz a si mesmo que elas não contam realmente. É possível ignorar esse aspecto de seu trabalho, assim como é possível discutir uma pintura religiosa sem qualquer referência à intenção religiosa do artista. Mas isso parece absurdo: Ignorar a preocupação central de uma escritora é uma estranha forma de tentar apreciá-la e entendê-la.
A questão é, então, como conciliar o moralismo de Austen com a sensibilidade moderna. Para discursar sobre esse problema, seria conveniente se pudéssemos encontrar alguém com essa sensibilidade moderna que realmente lê Austen por sua instrução moral (em adição ao prazer literário que ela proporciona). Que conveniente termos à nossa disposição alguém que se encaixa nessa descrição: eu.
Eu acho que ler Jane Austen me ajuda a elucidar escolhas éticas, a descobrir um meio de viver com integridade no mundo corrupto e até a adotar o tom e a maneira adequados ao lidar com os outros. Seu moralismo e a mentalidade moderna não estão, de fato, em oposição direta, como é tão freqüentemente suposto.
Dizer que alguém valoriza a instrução moral de Austen pode provocar ceticismo porque, afinal, ela era uma solteirona vivendo na Inglaterra provinciana há 200 anos. Mas nossos mundos não são tão diferentes. Nós vemos as personagens de Austen – vaidosas, egoístas, ingênuas, compassivas – em nossas vidas todos os dias. O tempo e a localização dela são, na verdade, uma vantagem. Em seu mundo circunscrito, os problemas da vida podem ser examinados com uma precisão mais aguçada.
Austen viveu na divisão das eras augustana do século XVIII e romântica do século XIX. No nosso tempo, quase toda canção, propaganda ou filme é baseado em princípios românticos. Não importa o quanto apreciemos as “felicidades da vida doméstica”, como Austen coloca em “Persuasão”, ainda sentimos o enorme impulso romântico para fazer alguma coisa mais heróica ou intensa. Ao invés de estarmos aproveitando um bom jantar enquanto conversamos com amigos, nós deveríamos estar lá fora forjando a consciência de nossa raça na oficina de nossa alma, ou algo assim. Eu realmente não quero forjar a consciência da minha raça, mas, ao mesmo tempo, não quero perder tudo o que o Romantismo oferece. É aí que entra Austen, pois ela é uma augustana familiarizada com o Romantismo, o que a torna mais útil do que um escritor moderno para nos ajudar a encarar o desafio romântico. Só ela pode, com credibilidade, mostrar a nós que é possível ter moderação e sentimentos profundos, bons jantares e boa poesia.
Quais são, então, os valores que Austen nos ensinaria? Palavras e frases carregadas de valor aparecem a todo momento em sua obra, freqüentemente aos montes: auto-conhecimento, generosidade, humildade, elegância, decência, constância, contentamento, bom entendimento, opinião correta, conhecimento de mundo, coração cálido, estabilidade, observação, moderação, candura, sensibilidade ao que é cordial e amável.
A instrução moral de Austen aponta para uma vida mais moral – em que “moral” se refere não apenas a princípios corretos, mas à conduta em geral. O sistema de valores de Austen pode ser tido como uma esfera com camadas. O centro poderia ser chamado de “moralidade”, a camada seguinte seria a “emoção” e, finalmente, a superfície, “conduta”. Moralidade consiste nos princípios fundamentais: auto-conhecimento, generosidade, humildade, compaixão, integridade.
A ênfase que Austen dá à ordem e ao decoro pode parecer seca e rígida. Mas qualquer um que leia “Mansfield Park” sentirá o mesmo alívio de Fanny diante da mudança da estrondosa desordem da casa de sua família em Portsmouth para a ordem da mansão. Da mesma forma, a consideração de Austen pelo autocontrole, especialmente expressa em “Razão e Sensibilidade”, pode parecer dura, mas é preciso lembrar como a autora claramente vê o sentimentalismo de Marianne com grande compaixão. Austen não está defendendo a supressão dos sentimentos – apesar de seu irrepreensível comportamento, Elinor é submetida a grandes sofrimentos e sente cada um deles profundamente. O que Austen está dizendo, como um psicólogo moderno pode recomendar, é que se deve evitar a desintegração da própria personalidade. Emoções são construídas sobre a fundação de nossa moralidade: um coração adorável, sensibilidade a tudo o que é amável. A conduta, por outro lado, tem a ver com comportamento, com o modo como trabalhamos no mundo: boa educação, maneiras suaves. Certamente ainda é necessário ter modelos de bom senso e conduta honrada expostos a nós.
Como a moralidade, a emoção e a conduta podem ajudar alguém a viver no mundo? Como deveriam ser as relações entre as pessoas e o mundo? Deve-se rejeitar o mundo inteiramente como corrupto e mercenário e hipócrita e superficial? Ou há um outro caminho, em que se podem manter a integridade e a sensibilidade, mas viver no mundo também? W. H. Auden colocou bem o problema quando escreveu:
“Será que a vida só oferece duas alternativas: ‘Você pode ser feliz, saudável, atraente, sociável, um bom amante e um bom pai, mas com a condição de que não seja curioso demais sobre a vida. Por outro lado, você pode ser sensível, consciente do que está acontecendo ao seu redor, mas, nesse caso, você não deve esperar ser feliz, ou bem sucedido no amor ou em casa com qualquer companhia. Existem dois mundos e você não pode pertencer a ambos.’”
De fato, Austen está perguntando se a vida oferece apenas as duas alternativas de “Razão e Sensibilidade” e podemos simpatizar com seu grito de desespero, pois quando o dilema é colocado da maneira como ele o faz, as duas parecem inconciliáveis.
Austen vem a nosso resgate, entretanto, visto que ela consegue se ajustar entre “Razão e Sensibilidade”, rejeitando os excessos de ambas. Sua postura agrada porque a combinação de moralidade, emoção e conduta proporciona um modo de vida que permite estar no mundo e desfrutar dos benefícios da sensibilidade também. Austen não escreve sobre boêmios e rebeldes; ela não quer mudar seu mundo – “ela não mudaria um fio de cabelo na cabeça de ninguém ou moveria um tijolo” como Virginia Woolf escreveu. Suas simpáticas personagens participam plenamente de sua sociedade e aceitam as convenções dela, e ainda têm corações e mentes perfeitamente bons. Bom senso não precisa estar em guerra com a sensibilidade.
Ironia não é apenas o modo de expressão característico de Austen: É seu modo característico de pensamento. A ironia de Austen reflete um perfeito entendimento de todos os meios pelos quais o mundo é ordinário e a crença de que, apesar de não podermos lutar contra isso, podemos, pelo menos, separamo-nos disso. Em suas sentenças irônicas, há movimento com estabilidade. Ela se move em direção ao objeto de suas críticas, e então se afasta dele, e aí proporciona um bom retrato no final. Essa movimentação rítmica serve como um ideal tanto para a aceitação quanto para a rejeição dos meios do mundo ordinário enquanto se mantém o equilíbrio.
A ironia das personagens de Austen também fornece àqueles de nós que acreditam no decoro uma forma de lidar com os hipócritas. Elinor Dashwood de “Razão e Sensibilidade” é raramente irônica, mas ela nos serve como um bom exemplo. Lembre da conversa quando o odioso John Dashwood, que havia traído a promessa feita no leito de morte patriarcal de ajudar suas meias-irmãs, sugere a Elinor que a Sra. Jennings lhes deixará uma herança. Elinor responde, “De fato, irmão, sua preocupação pelo nosso bem-estar e prosperidade o levam muito longe”. Faltam a John Dashwood generosidade e integridade. Elinor o insulta, mas ela o faz da maneira mais cortês possível.
Se alguém quiser argumentar que a moralidade de Austen é útil para uma pessoa que vive nos dias de hoje, precisará lidar com três casos difíceis. Primeiro, há a objeção de Fanny ao teatro amador em “Mansfield Park”. Então, em “Razão e Sensibilidade” há a recusa de Elinor a lutar pelo homem que ela ama, Edward Ferrars, quando ela sabe que ele está oficialmente comprometido com Lucy Steele, uma mulher que “unia a insinceridade à ignorância”. Finalmente, há o reconhecimento de Anne Eliot em “Persuasão” de que ela fez a coisa certa seguindo os ditames de Lady Russel para recusar o Capitão Wentworth, mesmo que isso tenha levado a anos de penúria sem amor para ambos. Nos três casos, Austen defende uma moralidade que parece quase absurda em sua rigidez. Qual é o grande problema com o teatro? Sustentar o princípio de honra vale a pena quando ele resulta em relacionamentos ruins e arrependimento? E que tipo de sistema de valores coloca a obediência antes do amor?
Tavez a rigidez de Austen seja muito antiquada, mas qualquer um pode encontrar mérito nos conceitos de honra, dever e obediência. Essas cordas ficaram tão frouxas que não há nada errado em apertá-las com uma leitura indulgente desse aspecto de Austen; elas afrouxarão novamente logo.
Para encerrar rapidamente os casos de Elinor e Anne, direi apenas que suas ações devem ser vistas no contexto de suas próprias crenças sinceras. A lição é de que às vezes é certo sacrificar alguma coisa que queremos pelo bem de nossa consciência.
Com Fanny Price quase parece que Austen decidiu criar uma personagem que não tem nem boas maneiras nem personalidade, mas é simplesmente moralidade crua. Ela é famosa por desagradar os leitores, mas suas ações e atitudes podem ser justificadas. Apesar de toda sua timidez, ela tem coragem de verdade. Ela se opõe aos outros quando eles querem que ela participe da peça e ela até resiste ao terrível ataque de fúria de Sir Thomas quando ela recusa a proposta de casamento de Crawford. É raramente reconhecido que Fanny está correta. O perigo da encenação é que ela deixa jovens homens e mulheres juntos em um ambiente com grande carga sexual e, de fato, eles realmente acabam levados ao resultado que Fanny temia: Henry Crawford e Maria Rushworth escapam juntos. Então Fanny não está simplesmente aderindo a uma regra arbitrária e tola sobre a decência ou não do teatro amador, ela está tentando evitar uma condição que realmente termina causando dor de verdade.
Os princípios de Jane Austen são de valor transcendente, eles não são “pedantes” e seus romances ilustram e defendem um modo de viver no mundo que é ético, sensível e prático. O melhor representante para o mérito da aproximação de Austen da vida é, entretanto, a própria Austen. O reflexo da primeira sentença de “Orgulho e Preconceito” pode ser vislumbrado sob ela. “É uma verdade universalmente reconhecida que uma mulher solteira com pouco dinheiro deve estar à procura de um marido.” Não há nada irônico nisso: No tempo de Austen essa realmente era uma verdade universal. A condição de Austen como uma mulher solteira sem dinheiro e já não tão jovem era, como ela coloca na descrição da Srta. Bates em “Emma”, estar “na pior situação do mundo para ter a simpatia das pessoas”. Como essa frase indica, entretanto, Austen era capaz de olhar para a própria situação friamente, claramente e sem auto-comiseração. Os romances carregam a estabilidade, o equilíbrio, a indulgência e o humor de sua criadora. Ao lê-los, a pessoa é envolvida na personalidade dela, a personalidade que podemos desejar adotar para nós mesmos, pois parece esclarecer muitos dos costumes, problemas e outras coisas da vida

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James Collins é escritor e editor, cujo primeiro romance, “Beginner’s Greek”, foi lançado esse ano. Esse texto foi adaptado de “A Truth Universally Acknowledged”, uma antologia de ensaios sobre o porquê de lermos Jane Austen, publicada no início dessa semana pela Random House.

10 thoughts on “O que Jane Austen faria?

  1. Cyn 24/11/2009 / 6:02 PM

    Meu Deus, esse é um dos melhores artigos que já li sobre Jane Austen!

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  2. Nayara Macena Gomes 24/11/2009 / 6:52 PM

    Adriana, li seu e-mail e fiquei muito feliz com o pedido! Aceitaria prontamente se ele não tivesse sido feito há puco tempo. Esse trabalho foi escrito para compor uma nota de uma disciplina eletiva. Minha professora ainda vai me passar um feedback a respeito dele. Assim que ele estiver OK, deixo vc publicar, certinho?

    Tenho um outro texto sobre um outro romance de Austen – Persuasion.Esse eu acho mais interessante pq se volta para o texto e não para uma comparação entre a obra e a adaptação fílmica.

    Adorei o seu blog!
    Vou linkar na minha página!

    http://baunilhaemorangos.blogspot.com/2009/04/jane-austens-persuasion-analysis.html

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  3. Lord Daniel 25/11/2009 / 12:11 AM

    O moralismo de Austen só me incomodou mesmo em Mansfield Park, onde ele aparece de maneira nada sutil. Nos três grandes romances – Persuasion, Emma e Pride and Prejudice – e em Sense and Sensibility ele aparece de maneira nuançada, em meio a dilemas morais e às tentativas dos personagens de conhecer a si próprios para fazer escolhas e juízos de valor mais corretos.

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  4. Adriana Zardini 25/11/2009 / 9:53 AM

    Lord Daniel, finalmente veio nos visitar! 🙂

    Lu e Cyn, esse texto é realmente muito bom!

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  5. Poliana 25/11/2009 / 11:25 AM

    Maravilhoso artigo!

    Fanny Price encontrou finalmente um redentor. De moralista pedante à corajosa heroína.

    E mais uma vez nos embasbacamos com a grandiosidade da obra de Austen.

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  6. Vanessa 11/12/2009 / 2:42 PM

    Cada vez que eu leio esses artigos sobre minha escritora predileta, a vontade que eu tenho é imprimir e dar a cada uma das pessoas que associam Austen ao Romantismo apenas, como se seus livros fossem apenas estórias sobre casamento. Existe vários aspectos em suas obras que muitas pessoas desconhecem. Excelente Artigo Adriana! Eu adorei!

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  7. Clara 29/12/2009 / 3:04 PM

    Olá Adriana!

    Seria possível eu publicar parte deste artigo no meu blogue?

    Obrigada,
    Clara

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